... a todos aqueles que lutam pelo bem comum.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

então é natal!

- por respeito ao leitor, eventuais palavrões serão substituídos por outras palavras com a mesma fonética.





Então era natal, era o grande dia, passara todo o mês angariando fundos para o evento. Naquela noite encantada, subiria na caçamba da pequena pick-up, fantasiado de bom velhinho e iria rumo a favela distribuir presentes.

A caçamba estava lotada de brinquedos, graças à estas benditas lojas chinesas, consegui fazer milagre com duzentos e trinta reais, havia bolas coloridas, apitos, chaveiros e até porta retratos com personagens da disney.

O som alto do carro e o tradicional sino chamavam as crianças, claro que nem todas iriam ganhar uma lembrança, mas algumas delas, pelo menos, teria felicidade naquele natal.

Vi que nem todos estavam tomados pelo espírito do natal ao ver a atitude de um bêbado que estava apoiado em um poste. Levantou o dedo médio para mim, com cara de poucos amigos, gritou para todo mundo ouvir – vai tomate cru Judas! 

Pobre diabo bêbado, talvez sem família, com certeza sem ceia de natal, não me importei, tremenda incoerência comparar Judas a Papai Noel.

Crianças corriam atrás do carro, era melhor parar ou juntaria gente de mais, na primeira esquina, paramos. Bastaram frações de segundos para que a pick-up ficasse completamente rodeada por crianças, adolescentes e até mesmo adultos. Uma senhora sem alguns dentes e com um bebê de colo esbravejava com os maiores. – deixa os pequenos pegarem primeiro!

      Mas os apelos da senhora não surtiam efeitos, aos empurrões, os maiores chegavam cada vez mais perto do carro, com suas mãos pra frente, impacientes, me "pediam" o presente – corra, filho da fruta, ta esperando o que?

Meus filhos, um casal de 23 e 21 anos a esta altura estavam com os vidros fechados, temendo pela segurança, a maquina digital que serviria para tirar as fotos minhas entregando os presentes para a criançada ficara escondida de baixo do banco, apreensiva minha filha pediu – pai joga logo todos e vamos embora!

No inicio tentei entregar nas mãos dos menores, mas vi que não daria certo, então comecei a jogar os presentes para longe para tentar afastá-los, mas a tática não surtiu efeito, logo eles estavam puxando da caçamba os presentes e eu já não tinha mais o controle. Alguns puxavam meus braços e minha barba, outros tentavam puxar o meu relógio.

Indignado com aquela cena esbravejei – pobres do baralho! Filhos da fruta mal agradecidos, vocês tem tudo que se torcer! 

Meu filho tentava arrancar com o carro, mas havia muitas crianças na frente, algumas já estavam em cima da caçamba, o bêbado que estava encostado no poste agora já estava próximo ao carro, gritava com um sorriso sarcástico – vamos queimar o Judas, taca fogo nessa aposta!

De repente um dos adolescentes me jogou um líquido, tive a impressão de ser álcool, a minha adrenalina e o pânico já atingiam níveis máximos, o cheiro fedido do esgoto que corria a céu aberto se misturava ao da minha urina que escorria pelas minhas pernas e empoçava na bota de couro – acelera filho, acelera essa corra!

Meu filho, desesperado arrancou com o carro, atropelou umas quatro ou cinco pessoas, acredito que sem muita gravidade, mas não ficamos pra ver.

      Lembro, como se fosse hoje, da minha roupa rasgada, das crianças atropeladas, do cheiro fedido do esgoto, da péssima iluminação, das crianças mal vestidas, dos bebês com os narizes sujos, daquele maldito bêbado me chamando de Judas, lembro da senhora sem dentes tentando conter aquela matilha de marginais, implorando por um presente pro seu bebê, não sei se pegou algo. 

     Ao sair da favela, respirei fundo e voltei pro meu mundo, com a certeza de nunca mais voltar para aquele antro de mal agradecidos, não perderia mais meu tempo tentando promover o bem – eles que se fundam!

No meio da confusão, quando estava cercado e todos puxavam os presentes da caçamba, olhei para uma criança de dez, doze anos no máximo e com a respiração acelerada pelo medo apelei – calma filho, hoje é natal!

O menino, com ódio, me olhou no fundo da alma e respondeu de forma seca – natal é o baralho!

Hoje, no conforto da minha casa, não há um dia que não lembre daquele maldito lugar, daquela maldita frase e daquele olhar.